quinta-feira, 14 de fevereiro de 2008

Sentimentalismo Burguês: o moleque e eu


Tava na praia caminhando, pensando na vida, na morte da bezerra e no meu mundinho que insisto em dizer que não é perfeito e que realmente não é. Não mais que de repente um moleque me pára na rua pedindo um trocado. Sequer me preocupo com desculpas ou em ser gentil e simplesmente digo não. “Só um trocadinho, tia”, insiste.

Ai, tia!!! Tia eu não mereço! Tudo bem, tenho idade mais que suficiente para ser tia dele, já que tenho até sobrinho-neto, mas tomei abuso por quem me chama de tia. O abuso foi tomado quando lá pelo meu 18° assalto, dois, nem tão moleques, numa bicicleta me assaltaram perto da minha casa, mas (vai ter azar assim lá na China) vinha passando uma viatura da polícia bem na hora. Resultado? Todo mundo pra delegacia.

Íamos nós cinco passeando de camburão: eu, dois policiais e os dois meliantes, que deveriam ter entre 17 e 19 anos, ou seja, no limiar da quase legalidade, na linha que determina seus futuros. Passear de camburão não foi uma das experiências mais gratificantes da minha vida, pode acreditar, mas o pior, pior que não ter delegado para registrar minha queixa, pior que ter perdido o teatro e o jantar com meus primos para o qual eu estava indo quando o fato ocorreu, pior do que passar horas tirando os carrapichos que grudaram na minha bolsa, quando os dois infelizes para se livrar das provas, jogaram-na no meio do mato, foi ouvir um deles, logo o maior dizer: perdoa nós, tia!!!

Eu sinceramente não gosto de não perdoar as pessoas. Eles já estavam perdoados por terem me assaltado, de coração, até porque eles quem saíram no prejuízo, não levaram nada, passaram uma noite pelo menos na delegacia e ainda amassaram a bicicleta tentando fugir. Mas havia algo que eu não podia perdoar: aquele moleque galazão ter me chamado de tia.

- E eu lá sou sua tia? Tia o cara... (lembrei que estava numa viatura) ...amba. Vocês me fazem perder meu teatro, sujam minha bolsa preferida, tentam me assaltar... meu amigo, eu sinto muito, nem que eu quisesse dava pra liberar vocês – digo sem olhar para trás onde estavam os dois, afinal eles sabiam onde eu morava, me ouviram dizer meu nome aos policiais e tinham visto bem minha cara, mais maquiada do que o normal, mas tinham visto.

Mais voltando ao tia do começo do texto, olho praquele pirralho que até tinha idade para ser meu sobrinho. Deu uma dó dele, que chance aquele moleque ia ter na vida?... olhei para ele inicialmente com cara feia, pois uma vez um moleque fingiu precisar de ajuda e quando fui ajudá-lo, tentou levar meu relógio (minha sorte é que vinha da escola e dei uma mochilada nele. O pobre foi parar alguns metros adiante antes que abrisse meu relógio que tinha um fecho complicadíssimo), depois disso passei a ter receio dos molecotes de rua.

- Pra que você quer dinheiro, menino? Disse eu ainda longe de aparentar algo semelhante a bom humor.

- Tô com fome.

-Tu ta mesmo com fome?

-Oxi! Táaaa!!! To, né tia? Ia mentir pra quê?

- Então vem!

Puxei o moleque pela mão, levei numa lanchonete e disse: aproveita.

-Posso pedir o que quiser?

-Fica a vontade.

Ele não pediu muito, só um lanche simples, coisa que criança gosta: salgadinho, bolo de chocolate, refri.... olhou pra mim, sorriu e disse:

- A senhora é dessas que não dá dinheiro, né? Acha que a gente vai comprar cola.

Juro que nem tinha pensado nisso, mas não sei porquê preferi o lanche a esmola (palavra péssima), acho que inspirada na minha mãe, que é assistente social. Lembrando que aquele moleque com fome podia ser meu pai, que passou maus momentos na infância, não virou trombadinha, mas passou por pobreza e desesperança, mas hoje é advogado, funcionário federal concursado, um homem de bem só porque alguém lhe estendeu a mão um dia. Não foi um lanche que o livrou de uma vida ruim, mas alguém que acreditou nele, que não teve medo ou receio. Tentei mostrar ao garoto que confiava nele.

- E você ia comprar cola? -perguntei.

- Eu não, tia, presta não.

- Muito bem. Você estuda?

- Estudo sim, mas tô de férias.

- Tem família?

- Tenho mãe e dois irmão.

Ele me conta que a mãe dele não é nenhum exemplo de candura, não é do tipo que espanca até tirar sangue, mas não sabe o que é um elogio ou incentivo. Ela conseguiu fazê-lo acreditar que não é nem nunca vai ser nada. Ele acaba o lanche e eu estou atrasada para o trabalho. Olhei para ele, me abaixei para olhá-lo nos olhos e falei:

- Escuta: primeiro, nunca deixe de estudar, porque isso pode realmente mudar sua vida. Segundo, continue sendo honesto, se sentir fome, peça, se ofereça para fazer algo, mas não pegue nada de ninguém, entendeu? Terceiro você é importante, é inteligente e tem direito de ser feliz.

- Entendi sim, sou doido de roubar, não, presta não.

Paguei o lanche o fui embora, carregando aquilo que chamam de “sentimentalismo burguês” e me sentindo péssima.

Acho que a única coisa que ele entendeu realmente foi o “não roubar”. Não fiz nada por aquela criança, não ajudei, a vida dela continuou a mesma e me senti triste, omissa, egoísta. Fiquei pedindo a Deus para que aquele menino tenha realmente absorvido algo do que eu disse e eu não venha a reencontrá-lo numa delegacia da vida com minha bolsa em suas mãos.

Por Orquídea

Um comentário:

Três Virgens & Uma Taurina disse...

Você mais uma vez disse tudo, em muitas palavras. Seus textos são grandes, não apenas em tamanho, mas em conteúdo. Cada palavra é milimétricamente colocada. Por isto, fico sempre ansiosa para saber qual será sua próxima criação.
Beijos e sucesso.
Butterfly